Vivemos tempos líquidos, como diria Bauman, em que os laços se formam e se desfazem com a mesma velocidade de uma atualização de feed. O amor, esse afeto tão denso e estrutural na constituição subjetiva, também parece ter migrado para o território do virtual. Mas será que ele continua sendo amor? Ou estaria reduzido a um espetáculo de projeções e idealizações? A psicanálise, especialmente a partir das obras de Freud e Lacan, nos oferece recursos potentes para pensar o amor no ambiente digital e, mais profundamente, o que essa nova configuração revela sobre o sujeito contemporâneo.

O amor como repetição e fantasia — Freud
Para Freud, o amor está enraizado na nossa história psíquica. Ele é marcado pelas primeiras experiências de afeto, a relação com os pais, os primeiros objetos de desejo, as frustrações iniciais. Amar, portanto, é sempre repetir: repetir aquilo que marcou, que faltou ou que encantou.
No espaço virtual, essa repetição encontra um campo fértil. A tela funciona como um espelho, um palco onde podemos reencenar antigas fantasias sem necessariamente confrontá-las com a alteridade do real. O outro, nesse cenário, é frequentemente idealizado: não há corpo, cheiro, silêncio desconfortável, frustração do toque. Há uma presença moldada por algoritmos, filtros e palavras bem pensadas.
Assim, muitos sujeitos se apaixonam, não pelo outro real, mas pela versão imaginária do parceiro virtual. Um amor que, no fundo, se endereça à própria fantasia. O digital permite amar a partir do narcisismo, evitando o confronto com o que no outro escapa à imagem ideal.
Lacan: o amor, a falta e o engano
Se Freud nos mostrou que o amor é uma repetição inconsciente, Lacan nos lembra que ele é também um equívoco. “Amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer”, diz ele. O amor lacaniano não é completude, é fenda. Ele parte da premissa de que somos seres faltantes e que o amor é, em essência, uma tentativa de costurar essa falta. Amar é, portanto, um gesto de invenção frente ao vazio.
No universo digital, essa dinâmica se complexifica. A falta continua existindo, mas é constantemente recoberta por imagens. A relação se dá mais com representações tipo fotos, vídeos, mensagens do que com a presença simbólica do outro. E aqui está o ponto central: no amor virtual, muitas vezes nos relacionamos mais com a imagem do outro (registro imaginário) do que com o que o outro representa no nosso desejo (registro simbólico).
Isso não significa que o amor virtual seja menos legítimo. Pelo contrário: ele revela com crueza os modos como o sujeito contemporâneo lida com sua falta, com seu desejo, com o Outro. Ao mesmo tempo em que oferece novas formas de encontro, ele também escancara o medo do confronto com a alteridade, com a diferença, com o que não se pode controlar.
A clínica psicanalítica diante do amor digital
O setting analítico, ainda que tradicionalmente fundado na presença física, também se transformou com o tempo. A escuta psicanalítica hoje acontece por videochamadas, mensagens e plataformas. E da mesma forma que o amor se virtualiza, o desejo também encontra novas formas de se expressar.
No Instituto Nós e Laços, compreendemos que o amor, virtual ou não, continua sendo um terreno fértil para a subjetivação. Não importa se os encontros se dão pelo toque ou pela tela, o que importa é o que cada sujeito repete, espera, teme e deseja nesses encontros.
A análise possibilita que o sujeito se escute em suas escolhas amorosas, em seus enganos, em suas dores. Mais do que julgar se o amor digital é “real” ou não, a psicanálise propõe uma pergunta: o que esse amor diz de você? Do que você foge? O que você busca?

Entre o clique e o laço: o que persiste?
O amor virtual é um sintoma do nosso tempo. Ele carrega as marcas da aceleração, da estética, do medo do fracasso e da ânsia por conexão. Mas ele também revela a insistência do desejo humano de se ligar, de ser reconhecido, de fazer laço.
Talvez o desafio atual não seja resistir ao amor digital, mas atravessá-lo. Fazer dele uma experiência que não escamoteie a falta, mas a reconheça. E, quem sabe, a partir disso, encontrar um laço mais verdadeiro, ainda que nascido de uma notificação.
E se o amor virtual for só uma maneira elegante de evitar o real?
O que será que o seu jeito de amar nas redes revela sobre você?